Catador de lixo é eleito vereador em Passira

(fonte: Blog de Magno Martins)
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Nas entranhas do semiárido nordestino, vir ao mundo parece uma sentença de condenação à pobreza. Poucos escapam ou conseguem superar as dificuldades, firmando-se como gente numa região tão desigual. Em Passira, no Agreste pernambucano, a 79 km do Recife, depois de viver a infância e a adolescência enfiando as mãos num lixão para ajudar o pai, “Seu Biu”, conhecido catador de recicláveis da cidade, o jovem Cassiano Oliveira da Silva, de 22 anos, vira uma página de superação. Vai botar, pela primeira vez em vida, paletó e gravata para adentrar ao recinto da Câmara do Município como vereador, eleito pelo PPS, em sua posse no dia 1 de janeiro de 2017.
Foto: Divulgação

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O ex-catador de lixo, que aos oito anos, às cinco da manhã, já estava enfurnando a cara numa fedentina insuportável, retirado da cama pelo pai, agora é um parlamentar legitimado pelas urnas. Um sem renda passará a contar com um subsídio mensal de R$ 6 mil. Quando ninguém acreditava na confirmação da sua sina – nem ele próprio, que se apresentou ao julgamento popular com o slogan “Vote no liso” – as urnas de 2 de outubro transformaram sua vida. Foi o quarto vereador mais votado de Passira, com 886 votos. De onde vieram seus votos?
 
“Eu ainda nem acredito que fui eleito. A ficha ainda não caiu, porque todo mundo falava e tirava onda de mim. Diziam que eu ia pra lá só para completar chapa, que eu ia ter 30 votos. Mas a população me deu esse presente de 866 votos”, desabafa Cassiano, para quem seu eleitorado é formado por gente que trocou as ofertas de dinheiro por uma proposta decente. É formado, também, por jovens, como ele, que apostaram no diferencial, que não se submeteram a ofertas mirabolantes para vender o voto, exercitando sua cidadania.
 
Enquanto muitos torram fábulas de dinheiro para chegar ao poder, Cassiano gastou apenas R$ 50, quantia, segundo ele, usada para abastecer a moto em que percorreu as áreas distantes do município para alcançar o eleitorado. “Eu dizia vote no liso, que o liso vai lutar por você quando chegar lá. Minhas palavras eram sinceras, sem hipocrisia. Aí o pessoal acreditou, apostou num projeto diferenciado”, afirmou.
 
Cassiano se inspirou no ditado de que todo mundo gostaria de se mudar para um lugar mágico. Mas são poucos os que têm coragem de tentar. Ele tentou e conseguiu. Eleito, o jovem parlamentar já tem a sua primeira bandeira: acabar com o lixão, de onde a família – o pai e outro irmão de 19 anos – continua tirando o seu sustento. “Meu pai e meu irmão não podem continuar vivendo feito bicho. Isso não é vida! O que enfrentei aqui, criança e rapaz, não desejo a ninguém. Para você ter uma ideia, fiquei imune ao fedor. Na minha casa, a 300 metros do lixão, as pessoas que nos visitam reclamam do mau cheiro, mas a gente, já impregnado pela rotina da fedentina, não sente mais nada”, diz.
 
O fim do lixão, em sua opinião, passa pela transformação da área numa usina de recicláveis. Ele quer, ainda, criar uma cooperativa para quem trabalha com recicláveis. “Isso ajudará a trazer uma solução para esse lixão, que é uma coisa que não pode mais existir, um lixão a céu aberto, irregular. Vou tentar regularizar isso. A cooperativa vai gerar emprego no nosso município, que está muito carente de emprego. Isso aqui é um potencial, porque lixo é dinheiro”, destacou.
 
A dura rotina
 
O lixão de Passira fica ao lado de uma área no sítio Salgado, onde Cassiano nasceu e ainda mora numa casa de alvenaria, antes um barraco de invasão. Ele conta que viveu dos oito aos 16 anos catando lixo, recurso que sobrou para ajudar o pai. “Eu chegava para o trabalho antes do sol raiar, para esperar a descarga dos caminhões com o lixo. Ficava ali, feito urubu a espera da carniça. Era horrível. Muitas vezes abria o que vinha embrulhado ou em caixas e se deparava com animais mortos”, revela, com semblante de tristeza.
 
A parte orgânica era separada para servir de ração aos porcos criados por seu Biu. “Meu pai ainda tira daqui a lavagem dos seus porcos”, ressalta, adiantando que todo material reciclável que colhia não podia ser vendido em separado, como resultado do seu trabalho. “Eu trabalhava exclusivamente para ajudar meu pai. A única forma de ganhar um extra era juntar pedaços de ossos, que algumas pessoas me compravam para transformar em ração”, disse.
 
No lixão, o expediente de Cassiano ia até meio dia, para não perder aula. Ele conseguiu acabar o ensino médio numa escola do município, onde conheceu uma jovem com quem se relaciona e tem planos para casar. “Quero ter uma vida decente, ser gente na vida”, diz. Seu sonho revelado: ser médico veterinário. “Vou estudar num cursinho preparatório para o vestibular. Sei que a política está me dando uma oportunidade para lidar com gente, mas gosto muito de animais e sonho entrar numa faculdade de Veterinária”, afirmou.
 
Na primeira experiência política, Cassiano subiu no palanque de uma candidata à prefeita que poucos acreditavam também na sua eleição: Rênya Carla (PP), personagem de reportagem postada ontem neste blog por ter posto abaixo o coronelismo do prefeito Severino Silvestre (PSD), enfrentando o duro preconceito por ser homossexual. “Rênya, como eu, enfrentou discriminação e preconceitos, mas ela sempre dizia que a vida particular dela não interessa para ninguém. O que interessa é a vida pública e ela, como um simples mandato de vereadora, fez muito mais coisas que vários políticos que tem anos e anos de carreira, que fizeram apenas o básico, apenas a obrigação deles”, observa.

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