Sonho de Papai Noel esbarra na precariedade

(escrito por: Fabiana Moraes/JC)

Papai Noel ainda estava descendo do ônibus quando o motorista decidiu pisar no acelerador. Quase velho, o olho esquerdo meio cego, ele voou longe. Bateu a cabeça no chão e ali mesmo perdeu quase todos os dentes de um canto da boca. Conta que o acidente se deu perto de um cemitério. Ele saiu rolando, rolando, e, quando finalmente o corpo parou, viu, o rosto rasgado da areia do chão, uma cova aberta quase à sua frente. Levantou-se, algumas pessoas ajudaram a limpar o sangue, tirou a poeira da camisa. Naquele dia, Papai Noel usava roupas talvez desinteressantes, pouco chamativas, de professor da rede pública municipal de Jaboatão dos Guararapes. Atendia pelo pseudônimo de José Fernando da Silva, cujo olho alquebrado, depois do impacto, nunca mais voltou a enxergar.

Papai Noel tem 52 anos e não se considera uma pessoa triste, mas quem o vê de fora não fica muito certo disso. Primeiro, porque a ausência dos dentes o constrange e, assim, o sorriso só acontece pela metade. Depois, porque tem umas olheiras grandes e bem criadas, cultivadas pelo hábito pouco saudável – seja para um bom ou mau velhinho – de dormir apenas uma hora por dia.

Foto: Edmar Melo/JC Imagem

Foto: Edmar Melo/JC Imagem

Diz que é a ansiedade aquilo o que não deixa descansar. Passa as horas na internet procurando uma maneira de ganhar um dinheiro a mais: foi demitido há alguns meses da escola e precisa urgentemente alimentar a renda mirrada de R$ 300 mensais. Vende ou já vendeu cosmético – Amyway, Natura, Boticário, Perfam, Avon – plano de saúde, crédito para celular, livro gospel, organizou passeios turísticos, criou uma agência de modelos e etiqueta, entrou na moda polêmica do Telexfree. Nenhum desses investimentos elevou de fato sua renda – na verdade, depois de acumular cerca de R$ 2 mil com os créditos para celulares, teve sua conta em um banco privado esvaziada. Dividia a senha com a pessoa que o contratou. Não recebeu mais notícias ou qualquer sinal de respeito.

Papai Noel mora no Ipsep, em uma casinha branca de muro rachado e teto baixo, a rua sem asfalto é enfeitada com duas enormes poças de lama. Lá dentro, vira dias e madrugadas acordado porque sabe que é impossível manter o sonho, a alegria, a luz pequenininha brilhando, sem qualquer tostão. Tem poucos dias para ir às ruas, quer se ver cercado de crianças segurando caixas de papel bonito, mas até agora não conseguiu comprar nenhum presente. Nenhum. Antes, nessa época, já tinha acumulado algumas doações, aparecia alguém dando algum apoio na escola na qual trabalhou. Mas chegou hoje, dia 21 de dezembro, e nada.

Tem tentado. Dia desses, às 3h, ele resolveu ir ao Facebook. É um horário ingrato para quem procura audiência, mas ele é um homem-entidade crédulo, tanto que um dos seus projetos para 2015 é combater a fome na África. “É muita gente sofrendo lá, não é? Tem que ajudar.” No mural, escreveu: “Fernando Silva. O seu Papai Noel do Ipsep. Atenção meus amigos: Eu, José Fernando da Silva venho solicitar humildemente de vossa senhoria uma pequena ajuda. Dê uma pequena doação em alimentos, roupas, produtos de beleza, higiene, nutrição e de saúde, principalmente de brinquedos para realizar um grande sonhos das crianças, jovens, adultos e terceira idade.” Aproveitou e colocou o mesmo texto também em espanhol – Noel, é claro, não fala apenas uma língua: “Usted tiene un día maravilloso lleno de amor, afecto y éxitos en sus vidas.” Divulgou ainda o site especialíssimo que ele mesmo produziu (http://papainoeldoipsep.wix.com/papainoeldoipsep), no qual uma torrente de emoticons, fotos e músicas de Xuxa são vistos e ouvidos na função repeat. O marcador que registra os votos só mostra uma curtida. Sobra solidão, faltam presentes. As olheiras ganham reforço.

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DESAFIO – A verdade é que Noel tem um enorme desafio pela frente: mesmo se conseguir algum dinheiro (“veja, qualquer ajuda”), só vai poder comprar umas bolas, umas bonecas. Mas sabe que é raro, hoje em dia, que algum desses brinquedos consiga acariciar de fato os olhos dos meninos e meninas que o cercam nas ruas e escolas. Mostra os bilhetes que recebeu no ano passado: “Papai Noel, eu Vanessa quero um Nokia.” “Papai Noel, tudo bom? Eu quero um Iphone”. “Papai Noel, meu sonho é ter um notebook, mas minha mãe não tem condição de comprar”. O cansado velhinho suspira e cobra alguma atitude de José Fernando. Naquele momento, o professor desempregado vestia calças Adidas vermelhas, bem largas. É uma síntese do mundo mítico e o cotidiano daquele lar. “Tá difícil esse ano, tá difícil”, se justificava Fernando enquanto mostrava fotografias de momentos de sua carreira. O momento máximo foi em 1997, quando um jornal foi cobrir a festa natalina no Ipsep. A página rasgada e amarelada é guardada como um tesouro. Fernando lê a matéria em voz alta. Acende-se alguma vaidade. Sorri com a metade da boca.

Podia ser pior: às vezes pedem coisas que lhe avessam o coração. Uma garota, ele lembra, queria um celular. Dias depois de expressar o desejo, o procurou. Contou que o pai sofrera um AVC. Que agora o presente ideal seria um par de muletas. Papai Noel, vestido em trajes civis de José Fernando, falou com Mamãe Noel, que em trajes civis é Silvia, 50, também professora. É ela quem dorme na cama de casal enquanto, ao lado, Noel posta pedidos no Facebook e alimenta as olheiras. Juntaram um dinheiro e compraram as muletas. Teve outro desejado presente que lhe doeu especialmente. O menino chegou perto e disse no ouvido: “Me dê uma casa, por favor”. Papai Noel quis saber a razão. “Meu pai bate em mim, na minha mãe. Vou morar nessa casa com ela e nunca mais ele vai ver a gente.”

SEM CASA – Nesse dia, não conseguiu prometer nada. Na realidade Papai Noel também está há tempos sem casa. Vendeu o apartamento no qual morava com Silvia. Conta que foi para recuperar o lar da mãe. “A água entrou e estragou as coisas por lá.” Desde então o casal divide o mesmo teto com Terezinha, 78, e Inês, 69. As duas observam orgulhosas o internacionalmente famoso filho e sobrinho conceder entrevista, um raro momento no qual se desprenderam da televisão. Viam um programa de auditório repleto de pessoas da mesma família gritando, discutindo. “Nunca me deu trabalho. Perdeu o pai pequeno, tinha uns 10 anos. Miguel trabalhava em caçamba de barro, mas gostava de farra, se envolvia com muita mulher… tava trabalhando em Alagoas e aí deram uma peixeirada nele”, conta Terezinha. Papai Noel segurava na mão da mãe quando ela soube da notícia. Haviam se arrumado para esperar aquela volta em uma escola perto de onde moravam, em Jaboatão. Uma das professoras conhecia a família, chegou perto e falou: “Olhe, podem ir embora. Soube agora que o seu marido não volta nunca mais”. Dias depois, o menino contou para a mãe que havia sonhado com a morte do pai. Noel, que nunca teve filhos, diz que também não adotou por falta de condições, não se recorda desse dia, muito menos de Miguel. Contaram que era bonito e tinha olhos verdes. Mas tem uma lembrança que ele deixaria facilmente para trás. Só que isso não acontece. Era pequeno, filho único, brincava pela rua. Um senhor, um vizinho, o procurava constantemente. Abusou do menino algumas vezes. “Já faz tempo. Não importa mais. Ele já morreu, já faz tempo.”

Começa a chover fininho lá fora. Papai Noel pega a roupa vermelha de cetim surrado, a mesma que vestia na fotografia tirada em 1997, e vai para a rua. A barba branca encaracolada, o náilon mais novo, contrasta com o cabelo menos polido. Tira do terraço a bicicleta antiga, de carga, equipada com caixa de som, papel crepom azul e vermelho, pisca-pisca. Trabalhou com ela nas eleições – outra tentativa de ganhar dinheiro – pedindo voto para uma candidata verde, um candidato amarelo. A primeira não ganhou. Liga o som de potência frágil e começamos a ouvir: “Por que é que Papai Noel não esquece de ninguém…” Sobe na bicicleta. “Isso aqui é o meu trenó, né?”. Noel ri de novo pela metade. Microfone de lapela ligado e um sininho na mão, ele vai para a rua, mais uma vez, tentar. Ainda acredita que alguém possa ajudá-lo (8568-1746 ou 9869-9343). Passa por cima das poças de lama que tomam conta de sua rua, a bicicleta empaca, ele empurra e segue. Não demora muito e as crianças começam a correr em sua direção. Um grupo delas sai de uma casa-barraco, cercam o velhinho. Ele ri, abraça, ouve pedidos, faz um ou outro cafuné. Aos poucos começam a se afastar. Uma menina muito pequena permanece abraçada à perna de Noel. Não quer ir embora. Pela primeira vez, o velhinho e Fernando riem por inteiro.

Quando volta para casa, tem certa dificuldade de livrar-se da roupa que é sonho. Torce para que a matéria do jornal o ajude a arrecadar os presentes que vão dar sentido à sua existência na noite do dia 24. Também quer realizar seus desejos. “Meu sonho é viver melhor, dar assistência para minha família, para a comunidade, ter um programa de TV para ajudar muita gente.” Pendura o cetim vermelho em um cabide ao lado do computador e é dali que Papai Noel passa observar Fernando. No final, ele sabe, é aquele professor insone que não pertence a este mundo.

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